Israel à beira de uma guerra civil? O colapso interno do sionismo
Como o sistema de dominação colonial construído contra os palestinos ameaça explodir dentro das fronteiras israelenses
Em 11/04, o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Olmert publicou um artigo de opinião afirmando que Israel está "mais perto do que nunca de uma guerra civil". Ele destaca os ataques do governo de Benjamin Netanyahu ao Judiciário e ao Shin Bet, o serviço secreto interno, como sinais claros dessa direção. O Shin Bet revelou que a administração Netanyahu tinha conhecimento prévio do ataque palestino de 07/10 e optou por não agir. Também foi revelado que o Qatar enviou recursos ao Hamas por meio de integrantes do governo, que teriam desviado parte desses fundos. A tentativa de Netanyahu de destituir o diretor do Shin Bet, alegando "falta de confiança", intensificou a crise política no país.
Outro ex-primeiro-ministro, Ehud Barak, também acusou Netanyahu de “declarar guerra a Israel”. Já o líder do partido Azul e Branco e favorito em uma eventual eleição, Benny Gantz, disse que o controle do Executivo sobre o Judiciário levaria o país “à beira de uma guerra civil”. A crescente tensão social levou o líder do partido opositor Democratas, Yair Golan, afirmar que Israel está matando bebês em Gaza “como um hobby”, “expulsando a população” e “lutando contra civis”. Segundo ele, Israel estaria se tornando um “pária global”.
O Ocidente começa a recuar diante do genocídio em Gaza?
No dia 20/05, publiquei uma entrevista minha afirmando que o mundo permanecia inerte diante do avanço de Israel rumo a uma solução final em Gaza. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, parece concordar com essa análise ao criticar o silêncio global diante da “
Por outro lado, têm crescido os protestos críticos ao genocídio. Nos meses seguintes ao ataque palestino de 07/10, as manifestações israelenses focaram quase exclusivamente na libertação dos reféns mantidos pelo Hamas. No entanto, recentemente, mobilizações lideradas pela esquerda sionista passaram a levar às ruas imagens de crianças palestinas assassinadas em Gaza, denunciando os crimes de guerra cometidos por Israel.
O movimento também defende a recusa dos israelenses em servir nas Forças Armadas — tanto entre reservistas convocados para a ofensiva em Gaza quanto entre jovens obrigados a se alistar ao completarem 18 anos. Em ambos os casos, o número de cidadãos judeus que se recusam a servir tem aumentado. “Sem soldados, sem ocupação”, afirma Alon-Lee Green, líder do movimento Standing Together.
Após um protesto realizado próximo à fronteira de Gaza, em 20/05, nove manifestantes judeus contrários ao genocídio foram presos, incluindo Green. Os ativistas permaneceram detidos por três dias antes de serem transferidos para prisão domiciliar. A polícia solicitou a prorrogação da detenção por mais uma semana, mas o Judiciário concedeu apenas dois dias adicionais. Green acusa a polícia — atualmente sob comando do extremista de direita Itamar Ben-Gvir — de aplicar dois pesos e duas medidas: uma lei para os militantes de direita, que bloqueiam a entrada de ajuda humanitária em Gaza, e outra para os manifestantes de esquerda, que interrompem o tráfego exigindo o fim da guerra.
Essa repressão estatal contra judeus israelenses de esquerda é mais um episódio de um longo processo em que o sistema criado para segregar, reprimir e eliminar os palestinos começa a se voltar contra os dissidentes internos. O único judeu antissionista eleito para o Parlamento, Ofer Cassif — membro da coalizão entre o Partido Comunista (Hadash) e o partido palestino Ta’al — foi suspenso por seus colegas parlamentares devido às críticas que fez ao genocídio em Gaza. Ele é mais um político a identificar no atual cenário israelense o caminho rumo a uma guerra civil, resultado da transformação do governo Netanyahu em uma “ditadura fascista”. “Sob o governo atual, infelizmente parece extremamente realista a possibilidade de destruição completa da sociedade israelense”, afirmou Cassif em março de 2025.
Enquanto Netanyahu avança para consolidar o controle total sobre Gaza e sobre o Estado israelense, é legítimo questionar se há chances reais de que esse conflito social se transforme em uma ruptura violenta entre judeus israelenses.
Guerra civil entre judeus ashkenazim e mizrahim?
A guerra civil parece uma possibilidade distópica que ronda o imaginário de diversas sociedades marcadas pela polarização causada pelo avanço das extremas-direitas. O filme estadunidense Guerra Civil (2024) imagina um cenário em que estados dos EUA se rebelam contra um presidente que se recusa a deixar o poder.
Essa ideia também esteve presente no Brasil, diante da possibilidade de um levante armado da direita após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Em áudio interceptado pela Polícia Federal, o coronel golpista Roberto Criscuoli expressa a expectativa de conflito: “Vai ser guerra civil agora ou vai ser guerra civil depois, só que a guerra civil agora tem uma justificativa, o povo tá na rua.”
Esse temor, inclusive, é alimentado por cientistas políticos como a estadunidense Barbara Walter, autora do best-seller Como as guerras civis começam – e como impedi-las (2022). Segundo ela, tanto o Brasil quanto os Estados Unidos correm risco de guerra civil por conta de movimentos golpistas liderados por grupos identitários que antes foram dominantes e agora se veem em declínio — como os homens brancos e cristãos.
“O fator mais importante para o início de uma guerra civil hoje é o que chamamos de anocracia — um termo sofisticado para democracia parcial. São governos que não são plenamente democráticos nem totalmente autocráticos. [...] O segundo fator é, nesses países onde há democracias parciais, se os partidos políticos se organizaram em torno da raça, religião e/ou etnia em vez de ideologia política. [...] Essa combinação de democracia parcial e partidos baseados em identidade é mais prevalente nos países que enfrentaram uma guerra civil nos últimos 30 anos.”
Walter cita como exemplos o conflito no Iraque após a deposição de Saddam Hussein, em 2003, que levou ao declínio dos sunitas e ao confronto com os xiitas; a ascensão do nacionalismo sérvio em 1991, na dissolução da Iugoslávia, com violência contra os bósnios muçulmanos; os embates entre curdos e jihadistas após os protestos contra Bashar Assad na Síria, em 2011; e os confrontos com russos étnicos no Donbass, na Ucrânia, após a queda do governo pró-Rússia de Viktor Yanukovych, em 2014.
A leitura de Walter é corroborada por um relatório secreto da CIA, elaborado em 1982 e tornado público em 2007, que previa uma guerra civil entre judeus ashkenazim (oriundos da Europa Oriental) e mizrahim (oriundos do Oriente Médio) em Israel. Os agentes interpretaram que a eleição de 1981 — em que Menachem Begin, do partido de direita Likud, venceu por apenas uma cadeira (48 a 47) o trabalhista Shimon Peres — sinalizava não só uma divisão política, mas também uma clivagem étnica na sociedade israelense.
Embora Begin fosse um judeu ashkenazi nascido na Bielorrússia, a sua eleição resultou de uma aliança entre parte da burguesia israelense favorável a uma política neoliberal e grupos ultraortodoxos e ultranacionalistas que ganhavam força desde o início da colonização dos territórios palestinos na Cisjordânia e Gaza, em 1967. Esses grupos religiosos e chauvinistas eram majoritariamente compostos por judeus árabes oriundos de países do Oriente Médio.
Esses judeus orientais foram integrados de forma subalterna pelas elites ashkenazim trabalhistas que governavam o país. Foram alocados em assentamentos precários, próximos a vilarejos palestinos, com o objetivo de “judaizar” essas regiões. Também foram sistematicamente excluídos dos espaços de poder e dos melhores postos de trabalho. Como resultado, nos anos 1970, emergiu o movimento dos “Panteras Negras”, formado por judeus mizrahim de esquerda — muitos deles antissionistas — que lutavam por integração social.
Contudo, a principal expressão institucional do movimento mizrahi foi a criação do partido Shas, em 1984, composto majoritariamente por judeus árabes conservadores e religiosos. A desconfiança das elites ashkenazim em relação à dupla lealdade dos mizrahim levou muitos desses a abraçarem com ainda mais força a religião judaica e o racismo antipalestino, como forma de reafirmar sua identidade judaica e conquistar reconhecimento.
Além disso, por pertencerem em sua maioria às classes populares, muitos judeus árabes foram incorporados à sociedade israelense por meio da colonização dos territórios palestinos — onde o governo oferecia benefícios sociais adicionais. Assim, o apoio à expansão colonial e à guerra contra os palestinos se tornou uma forma de exercerem a sua “israelidade".
Em vez de refletir uma suposta inclinação conservadora derivada de sua origem árabe, como frequentemente sugerido pelos israelenses ashkenazim, a escritora judia de origem iraquiana Ella Shohat argumenta que é a subjugação estrutural dos mizrahim em Israel que explica sua tendência à religiosidade e ao chauvinismo. O ministro Itamar Ben-Gvir, de origem iraquiana, é atualmente o principal representante desse movimento. E Netanyahu depende do apoio do partido de Ben-Gvir, o Tkuma, do Shas e de outras legendas ultranacionalistas e ortodoxas para se manter no poder.
Em Israel, portanto, a divisão entre direita e esquerda também assume contornos étnicos. Os israelenses pacifistas e seculares, em sua maioria ashkenazim, tendem a responsabilizar os mizrahim pela manutenção do conflito com os palestinos. Como observa Ella Shohat, há uma percepção de que o contato dos judeus árabes com a educação de matriz europeia em Israel teria falhado em “civilizá-los”.
Contudo, essa divergência, que expressa clivagens políticas, étnicas e religiosas evidentes, poderia de fato se transformar em uma guerra civil entre judeus israelenses?
Imperialismo, colonialismo e guerra civil
Na Palestina, ocorreram episódios de violência entre judeus sionistas e antissionistas durante o Mandato Britânico (1918–1948). Ainda que o movimento antissionista dentro de Israel exista desde os anos 1960, ele sempre manteve uma posição marginal. A grande maioria dos judeus antissionistas opta pelo exílio em vez de disputar os corações e mentes da sociedade israelense.
Dessa forma, o embate atual dentro de Israel se dá no interior do campo sionista. A principal força de oposição a Netanyahu é o sionismo liberal, representado pelo partido Democratas, que, embora tenha perdido muito da força que o trabalhismo já teve, ainda mantém influência relevante em setores estratégicos como a central sindical Histadrut e o grande capital israelense, historicamente dominado por monopólios ashkenazim.
Embora tenham liderado o processo de fundação do Estado de Israel, os ashkenazim representam 32% da população judia do país, enquanto os mizrahim constituem 45%. Além disso, os palestinos remanescentes da Nakba expressam cerca de 25% dos cidadãos israelenses. Essa grande composição árabe—mizrahi e palestina—provoca ansiedade nas elites ashkenazim a respeito tanto do futuro de Israel sob governos conservadores mizrahim como sobre a maioria étnica judaica em todo o território da Palestina.
Segundo o modelo teórico de Evans, uma guerra civil em Israel poderia eclodir com a reação de Netanyahu — impulsionada por sua base de apoio mizrahi — à tentativa dos judeus ashkenazim e liberais de conter a sua captura do Estado. Contudo, essa hipótese apresenta limitações importantes.
Em primeiro lugar, concordo com o argumento do pesquisador Sai Englert de que a continuidade do colonialismo israelense atua como o principal dissipador de conflitos na sociedade israelense. Essa hipótese se baseia na função que o colonialismo desempenha em contextos capitalistas: ele permite que as metrópoles exportem continuamente trabalhadores, mercadorias e capital excedentes, além de extrair os recursos naturais e explorar o trabalho das nações indígenas de forma predadora, o que atenua as contradições internas do capitalismo e evita que resultem em revoluções ou guerras civis. O imperialismo britânico teria, por exemplo, garantido o desenvolvimento capitalista do Reino Unido e impedido uma revolução social como a ocorrida na França, em 1789.
Esse raciocínio se confirma no episódio de 1995, quando o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin tentou limitar as ambições coloniais de Israel por meio dos Acordos de Oslo — tentativa que lhe custou a vida, ao ser assassinado por um colono de extrema-direita. A continuidade da colonização e a negação da criação de um Estado palestino ajudam a conter conflitos internos mais generalizados. Mesmo um israelense de esquerda que defende a paz se beneficia da expansão dos assentamentos, já que o aumento da oferta de moradia reduz o preço dos imóveis para toda a população israelense. Essa condição colonial sustenta o bem-estar social dos judeus israelenses, refletido em seus altos índices de desenvolvimento humano, atenuando a radicalidade das insatisfações com o governo.
Em segundo lugar, a teoria de Evans — que associa guerras civis a conflitos étnicos, e é respaldada pelo relatório da CIA — parte de uma leitura orientalista das disputas políticas em sociedades não ocidentais. Frequentemente, há sobreposições entre raça e classe que conferem contornos étnicos a esses conflitos, como nos casos de Iraque, Síria, Bósnia e Ucrânia. Reduzi-los a choques étnicos reforça uma interpretação culturalista que parte do pressuposto de que grupos étnicos distintos são, por essência, incapazes de coexistir pacificamente — o que leva inevitavelmente ao conflito. A possibilidade de uma guerra civil por divergências entre grupos étnicos judaicos tampouco corresponde à realidade israelense, onde o sionismo ainda é uma ideologia dominante em toda a sociedade.
Essa interpretação liberal das guerras civis ignora ainda dois fatores centrais presentes em praticamente todos os conflitos civis no Oriente Médio no século XXI: a interferência de potências externas e a presença de uma ideologia revolucionária. De modo geral, as guerras civis na região resultam do choque entre potências rivais que atuam por meio de grupos locais — uma lógica que remonta à dinâmica da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. A insurgência revolucionária ou o colapso do aparato estatal não ocorrem de forma espontânea, mas por interferência externa.
Nos casos do Iraque, Afeganistão, Líbia, Bahrein, Iêmen e Sudão, observamos, de um lado, a intervenção militar do imperialismo norte-americano — atuando diretamente ou por meio de aliados regionais como Turquia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Israel — com o objetivo de manter regimes autoritários ou promover sua substituição por forças alinhadas ao Ocidente. De outro lado, há o envolvimento de potências como Rússia e Irã, ou de seus aliados estratégicos, como o Hezbollah. Além disso, esses conflitos registram a atuação de grupos revolucionários islâmicos, que, embora variem entre vertentes jihadistas mais próximas da Al-Qaeda e tendências alinhadas ao Irã, compartilham o mesmo objetivo: conquistar o poder político por meio da luta armada.
Essas variáveis, no entanto, não estão presentes no conflito interno da sociedade israelense, mas sim no genocídio em curso contra os palestinos em Gaza, marcado pelo apoio estadunidense a Israel e pela resistência armada do Hamas, auxiliado por Irã e Qatar. Os sionistas liberais não constituem, neste momento, uma força revolucionária com capacidade de sustentar uma luta armada contra Netanyahu. Este grupo ainda está preso à moralidade dos infindáveis diálogos pela paz e não parece disposto a se sujar na luta armada revolucionária. Além disso, a sociedade israelense é fortemente subordinada aos Estados Unidos, o que impede, até agora, qualquer intervenção direta de uma força externa antagônica capaz de armar ou financiar esse setor. A única possibilidade — ainda que remota — seria uma cisão dentro das Forças Armadas.
O genocídio perpetrado pelas forças israelenses conta com amplo apoio da sociedade judaica em Israel. Uma pesquisa recente revelou que 82% dos judeus israelenses apoiam a limpeza étnica dos habitantes de Gaza, enquanto uma maioria sólida — 56% — defende também a expulsão dos palestinos cidadãos de Israel. Diante desses números, percebe-se que há mais coesão entre os judeus israelenses do que sugerem os discursos das lideranças que criticam a concentração de poder sob Netanyahu. A retórica da “guerra civil” parece funcionar mais como metáfora para apontar as fraturas emergentes dentro da sociedade israelense do que como uma ameaça concreta.
As divergências ainda ocorrem majoritariamente dentro dos limites do consenso sionista, onde a existência de um Estado exclusivamente judeu não é colocada em xeque. Um conflito armado entre judeus em Israel só ocorrerá se a atual rachadura — ainda incipiente — na ideologia sionista se ampliar, e se os judeus antissionistas passarem a integrar de forma ativa a luta palestina por libertação. Esse processo, aliás, já começa a se desenhar nas comunidades judaicas da diáspora, onde o antissionismo vem se consolidando como uma força cada vez mais potente.
O judaísmo está em crise?
Começo esta edição da newsletter Terra em Transe com um tema que não havia planejado, mas que se impõe como urgente: a afirmação da professora Arlene Clemesha de que o judaísmo vive uma “crise de consciência”. Apesar de este espaço ser dedicado prioritariamente à Questão Palestina, ele também servirá para discutir a Questão Judaica — dois temas que, des…
Muito bom, professor!!
Acho impressionante como vc consegue explicar de forma clara a situação em Israel. E como consegue fazer uma análise equilibrada e realista, sem deixar de ser transparente quanto a sua posição antissionista. Quem dera mais judeus no Brasil lessem as suas palavras e fizessem coro contra o genocídio.