O judaísmo está em crise?
Assistimos a um fim sem volta da hegemonia sionista sobre as comunidades judaicas ao redor do mundo
Começo esta edição da newsletter Terra em Transe com um tema que não havia planejado, mas que se impõe como urgente: a afirmação da professora Arlene Clemesha de que o judaísmo vive uma “crise de consciência”. Apesar de este espaço ser dedicado prioritariamente à Questão Palestina, ele também servirá para discutir a Questão Judaica — dois temas que, desde a colonização sionista-israelense da Palestina, tornaram-se indissociáveis.
Clemesha está relançando seu livro fundamental, Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil, pela editora Boitempo. A obra mostra como marxismo e judaísmo partilharam uma trajetória comum muito próxima na Europa do final do século XIX e início do XX. Como um povo estruturalmente oprimido pelo antissemitismo, os judeus aderiram com facilidade aos ideais marxistas de emancipação. Contudo, essa relação foi marcada por tensões, como demonstra Clemesha: o antissemitismo era forte entre setores das esquerdas europeias, e as reivindicações dos trabalhadores judeus por autonomia cultural dentro do movimento socialista eram muitas vezes vistas como ameaças à unidade da classe operária.
Acima de tudo, o livro é essencial por demonstrar que o sionismo — um nacionalismo judeu etnocêntrico — não era a ideologia dominante entre os judeus europeus no início do século XX, nem tampouco a única resposta ao antissemitismo. A maior parte dos judeus na Europa defendia a construção de um mundo sem racismo, sem classes e sem nações — a utopia socialista. Esse movimento, porém, foi tragado pela agenda do socialismo real na União Soviética ou aniquilado pelo nazi-fascismo durante o Holocausto. Os sobreviventes dessa tradição dissolveram-se nas esquerdas globais do pós-guerra ou se submeteram à hegemonia sionista, consolidada com a criação do Estado de Israel em 1948.
Clemesha aponta para a crise atual do judaísmo, mas que poderia ser do sionismo, revelada pelo conflito crescente entre coletividades judaicas diante do genocídio israelense contra os palestinos em Gaza. Nos EUA, no Brasil e em diversas comunidades judaicas ao redor do mundo, judeus antissionistas se mobilizaram contra o establishment judaico defensor do Estado de Israel e de seus crimes. Os acampamentos universitários e protestos públicos nos EUA são as expressões mais contundentes dessa "crise de consciência". Famílias, amizades e laços comunitários têm sido rompidos por causa do debate sobre até que ponto o Estado de Israel pode representar as aspirações judaicas por liberdade e justiça.
A hegemonia sionista sobre o judaísmo
Essa crise, no entanto, não é nova — e Clemesha demonstra isso com clareza. Os primeiros opositores do sionismo foram os próprios judeus marxistas. O movimento sionista socialista surgiu de uma ruptura no principal partido judaico marxista da época, o Bund (União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia). O Poalei Tzion (Trabalhadores de Sião) foi fundado em 1901, após o Bund rejeitar o sionismo diante do início da colonização sionista da Palestina. O antissionismo, desde sua origem, é anticolonial — e não antinacionalista, como alegam seus críticos. O próprio Bund defendia um nacionalismo judaico cultural, e não territorial, como o sionismo.

O Holocausto e a criação de Israel, porém, consolidaram a hegemonia sionista nas comunidades judaicas durante a Guerra Fria. Os judeus marxistas deixaram de confrontar o sionismo, como observa o intelectual marxista brasileiro Jacob Gorender. Havia entre eles a compreensão de que Israel não solucionava a Questão Judaica, pois não enfrentava o antissemitismo nem promovia uma real emancipação. Ainda assim, a esquerda judaica passou a não mais se opor ao sionismo. O apoio da URSS à criação de Israel foi central para essa virada e para o esfriamento da “crise de consciência” judaica — ou seja, o conflito interno sobre qual solução política adotar frente à Questão Judaica.
A partir de então, dirigentes sionistas passaram a hegemonizar as comunidades judaicas, sempre em estreita ligação com Israel. A isso se somou a repressão aos comunistas durante a Guerra Fria, com o macarthismo nos EUA e a ditadura civil-militar no Brasil. A ascensão social dos judeus em seus novos países e em Israel levou ao desaparecimento da esquerda judaica marxista. Como consequência, o antissionismo deixou de existir como movimento político organizado — tanto entre judeus quanto entre setores da esquerda. Os palestinos ficaram isolados nessa luta.
Falo mais profundamente sobre isso neste artigo.
O engodo da “paz”
A dissolução da esquerda marxista global, judaica ou não, culminou na ascensão do chamado “campo da paz” como alternativa política para os judeus de esquerda nos anos 1980. O movimento Paz Agora foi uma ruptura com o expansionismo colonial que marcou a esquerda israelense desde a fundação do Estado. Esse campo passou a defender a paz com os povos árabes como forma de salvar o projeto sionista, ameaçado pela ocupação dos territórios palestinos da Cisjordânia e de Gaza, onde milhões de palestinos viviam sob ocupação militar. A anexação dos territórios palestinos e a imposição de cidadania israelense faria os judeus se tornarem minoria em Israel. As únicas alternativas seriam a limpeza étnica dos palestinos ou a manutenção eterna do apartheid.

Esse movimento se fortaleceu após o massacre de Sabra e Shatila, que matou mais de três mil palestinos durante a ocupação israelense de Beirute, em 1982. Tornou-se ainda mais relevante depois de a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) reconhecer o Estado de Israel em sua Declaração de Independência de 1988, durante a Primeira Intifada. A aceitação da solução de dois Estados pelos palestinos fortaleceu os sionistas “pacifistas”. Pela primeira vez, Israel, Palestina e paz pareciam poder coexistir como projetos políticos viáveis.
O retorno do Partido Trabalhista ao poder em 1991 e a assinatura dos Acordos de Oslo com a OLP, em 1993, deram corpo a essa esperança. O mundo inteiro apoiou esse projeto, incluindo judeus de diversas orientações políticas, inclusive os antigos marxistas não sionistas. A exceção foi a extrema-direita representada por neoconservadores (como Benjamin Netanyahu) e os kahanistas (o fascismo judeu), que viam Oslo como traição ao ideal da “Grande Israel”.
Contudo, a verdadeira autodeterminação palestina nunca fez parte dos planos da esquerda israelense liderada por Itzhak Rabin. E aqui os sionistas certamente discordarão de mim. Mas em nenhum momento os Acordos de Oslo falam em Estado palestino ou soberania plena. O que Oslo de fato fez foi reconhecer a OLP — até então considerada terrorista por Israel e pelos EUA — como legítima representante do povo palestino, e estabelecer a Autoridade Palestina (AP) como estrutura de autogoverno em algumas localidades ocupadas. Ao apresentar os Acordos de Oslo II ao parlamento, Rabin foi claro:
“Gostaríamos que isso [a Palestina] fosse uma entidade que seja menos do que um Estado e que administre de forma independente a vida dos palestinos sob sua autoridade. As fronteiras do Estado de Israel, na solução permanente, estarão além das linhas que existiam antes da Guerra dos Seis Dias. Não retornaremos às linhas de 4 de junho de 1967.”
Ou seja, a esquerda israelense nunca esteve disposta a abrir mão dos assentamentos ou permitir a autodeterminação real dos palestinos. Oslo não fracassou — os acordos cumpriram exatamente o que Rabin anunciou: uma autonomia palestina limitada e o avanço contínuo da colonização.
Rompendo com o “campo da paz” e retornando ao antissionismo
A escalada da violência israelense após Oslo — com massacres durante a Segunda Intifada e repetidos bombardeios sobre Gaza — contribuiu para a erosão da hegemonia sionista. Um exemplo emblemático é a organização Jewish Voice for Peace (JVP), criada nos EUA em 1996 por estudantes judeus para defender a paz e a solução de dois Estados. Em 2019, a JVP tornou-se abertamente antissionista, ao reconhecer o sionismo como forma de colonialismo e Israel como um Estado de apartheid.

Judeus em todo o mundo passaram a entender que, para que a Palestina seja livre, o sionismo precisa ser desmantelado. O chamado “sionismo da paz” tornou-se uma fantasia de poucos. O sionismo real representa colonialismo, genocídio e limpeza étnica dos palestinos. Israel deixou de encarnar as aspirações judaicas por justiça, igualdade e liberdade.
A “crise de consciência do judaísmo”, portanto, deve ser compreendida como o fim da hegemonia sionista sobre as comunidades judaicas. A esquerda judaica tem abandonado o sionismo e retomado suas lutas locais por emancipação, em aliança com outros povos oprimidos. No Brasil, isso significa lutar ao lado de negros e indígenas. No Oriente Médio, significa lutar pela libertação da Palestina. Somente em um mundo antirracista os judeus poderão ser realmente livres — onde a luta contra o antissemitismo caminhe junto com a luta de todos os povos contra a opressão.
Muito bom texto. Parabéns