Por que o Hamas não abaixa as armas?
A recusa do Hamas em se desarmar não é fruto de irracionalidade, mas uma resposta histórica às promessas não cumpridas de paz, aos massacres e à continuidade do colonialismo israelense na Palestina
Desde que Israel retomou os ataques à Faixa de Gaza após dois meses de cessar-fogo e a troca de reféns em março de 2025, a possibilidade de um novo acordo, segundo a mídia ocidental, tem sido dificultada pela suposta recusa do Hamas em depor as armas. O grupo palestino passou a ser representado como o principal obstáculo à paz — um expediente histórico de Israel, que transfere a responsabilidade por sua própria violência aos palestinos.
Esse discurso, no entanto, foi parcialmente enfraquecido pelo acordo direto entre os Estados Unidos e o Hamas para a libertação de Edan Alexander, soldado israelense e cidadão estadunidense. A libertação ocorreu sem contrapartidas por parte dos EUA e sem a participação de Israel. O enviado especial de Donald Trump para o Oriente Médio, Steve Witkoff, afirmou que a libertação dos reféns está travada porque “Israel não deseja acabar com a guerra”.
Segundo o Hamas, a libertação de Alexander foi um gesto de boa vontade diante do desejo de negociar um cessar-fogo definitivo que garanta a permanência dos palestinos em Gaza, o fim do bloqueio, a retirada do Exército israelense e a reconstrução do território. Os EUA teriam, inclusive, aberto mão da exigência de desmilitarização do grupo para avançar nas negociações.
Enquanto isso, a população de Gaza enfrenta há dois meses um bloqueio israelense que impede a entrada de ajuda humanitária, incluindo alimentos e medicamentos. De acordo com a ONU, toda a população de Gaza passa fome, com um em cada cinco palestinos — cerca de 500 mil pessoas — em estado de desnutrição severa.
O governo de Benjamin Netanyahu, por sua vez, anunciou uma ampla ofensiva militar com o objetivo de ocupar Gaza, resgatar os prisioneiros israelenses e expulsar a população nativa. O ministro Bezalel Smotrich declarou a intenção de “conquistar” Gaza para anexá-la — ele também avança com projetos de anexação de partes da Cisjordânia. Já o ministro Itamar Ben Gvir afirmou: “Devemos parar de hesitar e lançar um ataque decisivo para esmagar o movimento e incentivar a migração da Faixa de Gaza”.
Por que, diante de tanto sofrimento, o Hamas se recusa a abaixar as armas?
Em primeiro lugar, porque não há nenhuma garantia de que a desmobilização das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, braço armado do grupo, traria paz. Ao contrário, o desarmamento do Hamas pode fortalecer as ambições coloniais de Israel, pois eliminaria o principal obstáculo ao despovoamento completo de Gaza.
A história palestina demonstra isso.
Nakba contínua e a resistência palestina
Neste 15 de maio, o povo palestino relembra os 77 anos da Nakba — quando cerca de 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas por milícias sionistas num processo de limpeza étnica que dividiu a nação entre os que permaneceram em sua terra natal, mas sem autodeterminação, e os que foram forçados ao exílio.
As primeiras gerações após a Nakba criticavam a aparente passividade de seus antepassados. Com o tempo, porém, formou-se uma nova narrativa que transformou em heróis aqueles que enfrentaram as milícias sionistas ou conseguiram reconstruir suas vidas no exílio, mantendo o vínculo com a identidade palestina.
Muitos palestinos avaliam que a Nakba só foi possível devido à brutal repressão à Revolta de 1936–39, quando trabalhadores, camponeses e parte da burguesia nacionalista se insurgiram contra o Mandato Britânico e sua colaboração com o projeto sionista. A repressão — com prisões em massa e assassinatos — desarticulou o movimento nacional, que, sob a frágil liderança do Mufti de Jerusalém, Amin al-Husayni, e sem apoio efetivo dos Estados árabes, não conseguiu impedir a catástrofe de 1948.
Nas décadas seguintes, os palestinos na diáspora passaram a se organizar para retornar à Palestina, mas foram repetidamente frustrados pelas lideranças pan-arabistas, como Gamal Abdel Nasser, no Egito. A falta de armas impedia a autonomia do povo palestino em protagonizar sua própria luta. Nos anos 1960, os movimentos de libertação da Argélia, da China e de Cuba — inclusive Che Guevara — apoiaram politicamente e militarmente a formação da guerrilha palestina.
A “revolução” palestina e a luta armada
Após a derrota dos Estados árabes na guerra de 1967, os palestinos lançaram a luta armada por meio da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Sob a liderança do Fatah, de Yasser Arafat, a revolução palestina tornou-se símbolo de resistência para os movimentos do Terceiro Mundo e o bloco socialista.
Depois de um êxito inicial contra tropas israelenses na Jordânia, em 1968, a crescente influência palestina no país levou o rei Hussein a reprimir o movimento, resultando em uma guerra civil em 1970 (Setembro Negro), encerrada após um ano com a intervenção de Nasser.
A OLP se estabeleceu no Líbano, onde, refugiados palestinos haviam assumido o controle dos campos de Beirute e do sul do país. A pesquisadora Rosemary Sayigh descreve como o início da luta armada resgatou a dignidade perdida dos refugiados palestinos. A força do movimento, contudo, também se entrelaçou às tensões internas libanesas, contribuindo para o início da Guerra Civil em 1975.
Em 1982, Israel invadiu o Líbano com o objetivo de expulsar a OLP e instalar o governo de direita de Bashir Gemayel. Durante o cerco a Beirute, os guerrilheiros palestinos aceitaram depor as armas sob a promessa de não agressão por parte das milícias cristãs apoiadas por Israel. O resultado foi o massacre de Sabra e Shatila, que matou cerca de 3 mil civis — majoritariamente mulheres, crianças e idosos.
Intifada e a rendição em Oslo
Exilada na Tunísia, a OLP assistiu, em 1987, à eclosão da Primeira Intifada, protagonizada pela população da Cisjordânia e de Gaza. Mesmo sem armas, os palestinos se mobilizaram com pedras, comitês populares, desobediência civil e boicotes — até criar vacas para evitar comprar leite israelense.
Do exílio, a OLP declarou a independência da Palestina em 1988, reconhecendo Israel e aceitando, tacitamente, a solução de dois Estados. A força acumulada do movimento, a solidariedade global e o fim da Guerra Fria abriram caminho para o processo de paz iniciado em 1991. Mas os Acordos de Oslo (1993–95) não realizaram os sonhos das massas palestinas.
Representando o pensamento da esquerda palestina, Edward Said chamou Oslo de a “Versalhes palestina”, ou seja, sua rendição:
“O reconhecimento por Arafat do direito de Israel de existir carrega consigo uma série de renúncias: à Carta da OLP; à violência e ao terrorismo; a todas as resoluções relevantes da ONU.”
Israel não reconheceu o Estado palestino, nem o direito à autodeterminação. Reconheceu apenas a OLP como representante legítima dos palestinos — em troca, os EUA a retiraram da lista de organizações terroristas. Arafat, enfraquecido, usou Oslo para recuperar protagonismo político após a derrota no Líbano e o escanteamento durante a Intifada. O acordo, no entanto, significou a capitulação da luta histórica palestina, sem contrapartidas substanciais por parte de Israel.
Hamas e a persistência da luta armada
O Hamas representou outro setor da sociedade palestina que rejeitou os Acordos de Oslo e a direção da OLP. O grupo surgiu como expressão da Intifada, em 1988, em oposição à moderação de Arafat. Após Oslo, o Hamas iniciou atentados suicidas contra civis israelenses visando à libertação total da Palestina. A escalada de violência culminou na Segunda Intifada (2000), quando Israel lançou a operação Defensive Shield, matando milhares de palestinos e promovendo uma brutal destruição de cidades palestinas.
A derrota militar levou o Hamas a buscar uma nova posição política. Participou das eleições da Autoridade Palestina (AP) em 2006, vencendo a maioria parlamentar. Com isso, tacitamente aceitou a solução de dois Estados e abandonou os atentados suicidas. No entanto, os EUA e Israel se recusaram a negociar com o grupo, eclodindo uma guerra civil entre Hamas e Fatah. O resultado foi a divisão política e territorial: Gaza sob o Hamas, Cisjordânia sob o Fatah. Desde então, com o bloqueio a Gaza, o Hamas passou a resistir com foguetes diante dos bombardeios israelenses.
Embora tenha moderado seu discurso nas últimas décadas, o Hamas mantém a radicalidade dos meios empregados. Acredita que a libertação não virá pela submissão a Israel e aos EUA — caminho adotado por Mahmoud Abbas, líder do Fatah, da OLP e da AP. O ataque de 7 de outubro e as atuais demandas do Hamas expressam esse duplo objetivo: persistência armada e fim da ocupação com a criação de um Estado palestino em Cisjordânia e Gaza.
Inspirado por histórias de resistência anticolonial, como a Ofensiva do Tet no Vietnã (1968), o Hamas entende que, mesmo sem uma vitória militar, a persistência da luta pode desgastar a ocupação, criando um cenário interno e internacional favorável à sua superação. O alistamento de 30 mil novos membros nas Brigadas de al-Qassam nos últimos meses, em contraste com as dificuldades de Israel em mobilizar reservistas e conter a cisão interna, indica que — ainda que a um custo altíssimo de vidas palestinas e israelenses — a estratégia pode estar se mostrando eficaz.