De Gaza à Caxemira: o apartheid globalizado
Como Índia e Israel reproduzem o colonialismo com armas, drones e ideologias racistas, unindo o sionismo à supremacia hindu em nome do “combate ao terror”
there is no rose red in Kashmir
some noise (or quiet) later
come – read the lines
illegible, over me
and you will know
the only rose red in Gaza
oozes from your heart to mine
No Rose in Red Kashmir - Ather Azia
Na recente escalada militar entre Índia e Paquistão, em torno da histórica disputa pela Caxemira, os militares paquistaneses derrubaram o drone Harop MK2, fabricado pela empresa israelense Elbit Systems. O uso extensivo de drones pela Índia no conflito — o Paquistão afirma ter derrubado 77 aeronaves não tripuladas indianas em dois dias — é resultado da profunda cooperação militar com Israel nos últimos anos.
Índia e Israel mantêm relações comerciais na área de segurança desde os anos 1950, mas a importação de tecnologias e técnicas israelenses cresceu exponencialmente a partir de 2010. A ascensão do supremacista hindu Narendra Modi ao poder, em 2014, levou as relações entre os dois países a um novo patamar, tornando a Índia o maior importador de armas israelenses. Ambas as nações se enxergam como aliadas na luta contra o “terrorismo muçulmano” — justificativa usada para reprimir os movimentos de resistência palestina e caxemire, respectivamente. A Índia compra cerca de 1 bilhão de dólares anuais em armas e equipamentos de segurança israelenses, testados previamente na ocupação militar sobre os palestinos. A parceria com Israel, vista ainda em outros projetos como o India-Middle East Corridor (IMEC), fez da Índia o único país do BRICS a não denunciar o genocídio em Gaza.
A aliança alcançou um novo nível em 2019, quando a Índia iniciou um processo de colonização por povoamento de hindus na Caxemira, região de maioria muçulmana, se assemelhando à política de assentamentos israelenses nos territórios palestinos. Esse é o contexto do atentado de 23 de abril, quando o grupo The Resistance Front (TRF) matou 26 turistas na região.
O TRF foi criado em 2019 como reação ao fim da autonomia do estado de Jamu e Caxemira, revogada sob o discurso de combate ao terrorismo e promoção da democracia por parte de Modi. Mas, assim como os palestinos, os caxemires lutam por autodeterminação nacional e contra a dominação estrangeira indiana. Para alguns caxemires, isso significa a criação de um estado independente; para outros, a unificação com o Paquistão. A Índia alega que o TRF seria uma célula do Lashkar-e-Taiba (LeT), grupo formado em 1990 no Paquistão para lutar pela libertação da Caxemira indiana.
Origem comum: o colonialismo britânico na Palestina e na Índia
Assim como na Palestina, o conflito na Caxemira tem raízes no colonialismo britânico e na interpretação inglesa de que as diferenças étnico-religiosas tornariam inviável a convivência no mesmo território, exigindo a partilha. Esse paradigma colonial de “dividir para governar” impediu a construção de estados multiculturais e ainda hoje é visível na separação entre Irlanda (maioria católica) e Irlanda do Norte (maioria protestante).
Na Palestina, os britânicos propuseram a divisão entre um estado árabe e outro judeu após a Revolta Árabe de 1936 — proposta consagrada na Resolução 181 da ONU, de 1947, que resultou na Nakba de 1948, em sucessivas guerras e na continuidade do colonialismo israelense até os dias atuais.
Também em 1947, no processo de descolonização da Índia iniciado em 1945, os britânicos impuseram a divisão do território com a criação do Paquistão, um estado muçulmano no noroeste (o Paquistão Oriental — de maioria bengali — conquistaria sua independência em 1971, formando Bangladesh). A presença de hindus e sikhs no Paquistão, e de muçulmanos na Índia, gerou violentos conflitos interétnicos e migrações forçadas. A região multiétnica de Jamu e Caxemira, um antigo principado independente, tornou-se objeto de guerra entre Índia e Paquistão em 1947.
Essa divisão fortaleceu o nacionalismo étnico, como a ideologia Hindutva, criada em 1922 para defender a hegemonia hindu, e enfraqueceu os líderes pluralistas da independência, como Gandhi e Nehru. Gandhi foi assassinado em 1948 por um nacionalista hindu que o acusava de ter feito concessões excessivas aos muçulmanos.
Após o cessar-fogo de 1948, a parte da Caxemira sob controle indiano recebeu autonomia em 1952. A disputa levou Índia e Paquistão a confrontos nas décadas de 1960 e 1970, e ambos se tornaram potências nucleares. Em 1962, a China conquistou uma parte da Caxemira paquistanesa. Já nos anos 1980, guerrilhas separatistas passaram a atuar na região administrada pela Índia, provocando milhares de mortes. Embora a província de Jamu e Caxemira tenha sido uma criação britânica de 1846, a identidade caxemire consolidou-se como um importante projeto nacional entre a maioria da população local.
A colonização hindu da Caxemira e a luta por autodeterminação
A chegada de Modi ao poder, defensor da Hindutva e responsável por políticas repressivas contra os muçulmanos, reacendeu os conflitos na Caxemira. Em 2019, a revogação do Artigo 370 da Constituição indiana permitiu o assentamento de não caxemires na região. Em 2021, cerca de 100 mil hindus já haviam adquirido o direito de se instalar na província, habitada por uma população 97% muçulmana, de aproximadamente 7 milhões de pessoas. A ambição do Partido do Povo Indiano, de Modi, é mover pelo menos 300 mil hindus para assentamentos exclusivos na Caxemira.
Em paralelo à situação palestina, a colonização hindu da Caxemira visa romper a coesão demográfica de uma população considerada inimiga. Após a Nakba, que expulsou 750 mil palestinos, Israel continuou promovendo a judaização de regiões como Galileia, Naqab, Cisjordânia e Gaza, caracterizadas por segregação étnica, checkpoints, brutalidade militar e deslocamento forçado.
Esses colonialismos tardios — hindu-indiano e judaico-israelense — demonstram como povos não brancos também podem implementar projetos racistas de assentamento, apartheid e genocídio, tradicionalmente associados à branquitude europeia. A fase atual, conduzida por governos de extrema-direita, radicaliza formas de dominação iniciadas por administrações de esquerda no início da Guerra Fria — os trabalhistas israelenses e o Congresso Nacional Indiano de Nehru.
Portanto, a violência dos colonizados observada nos últimos anos deve ser compreendida como reação anticolonial. Se o ataque palestino de 7 de outubro representou a explosão de uma panela de pressão alimentada pelo bloqueio israelense a Gaza, o atentado de 23 de abril na Caxemira foi uma resposta brutal ao avanço colonial indiano. Ainda assim, apesar das semelhanças entre os governos de Modi e do israelense Benjamin Netanyahu, a Índia dificilmente promoveria um genocídio como o de Gaza, devido ao risco de confronto com outra potência nuclear: o Paquistão — aliado de Estados Unidos, China e Turquia.
Embora a direita tenha retomado o poder no Paquistão em 2022, após eleições fraudulentas, um acordo com Modi em torno da questão da Caxemira é improvável. Não por acaso, um cessar-fogo foi anunciado no sábado, 10 de maio, para evitar a escalada da violência. A inexistência de um estado que represente de forma eficaz os interesses palestinos e equilibre a correlação de forças — como Egito e outros países árabes fizeram no passado — permite a Israel executar impunemente seu genocídio em Gaza. O Irã e o Eixo da Resistência ainda estão longe de cumprir esse papel.
De Gaza à Caxemira: Intifada e azadî
O termo intifada, em árabe, significa "revolta" e ganhou notoriedade mundial em 1987, quando os palestinos se levantaram contra a ocupação israelense exigindo libertação. Essa luta inspira, há décadas, o movimento caxemire por azadî, palavra que significa liberdade. A união dessas lutas levou militantes caxemires a chamarem de “Intifada Caxemire” o levante popular ocorrido no início dos anos 2000. Muitos descrevem a Caxemira como “a Palestina do Sul da Ásia”, embora sem a mesma atenção internacional.
A intelectual e militante feminista caxemire Ather Zia destaca a existência de uma “solidariedade afetiva” entre Caxemira e Palestina. Em um depoimento colhido por ela, um caxemire afirma: “As feridas deles [os palestinos] são as nossas feridas. Nós nos levantamos por eles também. Sabemos o que é viver sob ocupação.”
Apesar da repressão do governo Modi, os caxemires foram às ruas protestar contra o genocídio em Gaza. Essa solidariedade existe porque o significado de ser palestino é semelhante ao de ser caxemire: viver como estrangeiro em sua própria terra sob ocupação colonial.
O colonialismo britânico deixou suas profundas cicatrizes. Infelizmente, ainda vemos a lógica colonial e racista em vastos territórios.
Parabéns pelo texto. Claro como sempre